Artigo | As Eleições Municipais de 2024 e o uso das ferramentas de Inteligência Artificial

A cada dois anos o foco das atividades legislativas na formulação e discussão de leis acaba se encurtando para realização de campanhas eleitorais. Apesar deste ano se tratar de eleições municipais, o legislativo federal também acaba sendo influenciado, uma vez que Deputados Federais e Senadores articularão e fortalecerão nomes para as eleições municipais. Além de fazer parte do compromisso partidário, os parlamentares federais também terão a oportunidade de consolidar sua imagem política regionalmente.

Em 2022, as eleições federais foram marcadas pela polarização política no Brasil, debates sobre Fake News e questionamentos sobre a lisura do sistema das urnas eletrônicas. Após quase dois anos, o advento e popularização de uma nova ferramenta tecnológica traz um novo elemento para o processo eleitoral: o uso das Inteligências Artificiais (IAs) nas campanhas eleitorais.

O ponto de preocupação quanto ao uso de IAs no processo eleitoral está na disseminação de conteúdos enganosos, dificultando ao eleitor separar o que de fato é verídico e o induzindo para desinformação. A IA já consegue realizar a produção de áudios de conversas entre candidatos que nunca aconteceram e a criação de imagens e vídeos lesivos politicamente produzidos artificialmente. Com a popularização da IA, a facilidade de acesso a essas ferramentas na produção desse tipo de conteúdo pode gerar impactos em campanhas eleitorais, principalmente para municípios de pequeno porte.

É interessante recordar o caso das eleições da Argentina deste ano. A Argentina foi o primeiro país que usou a IA em grande escala na campanha eleitoral dos candidatos à presidência.

A campanha do candidato presidencial Sergio Massa chegou a criar um perfil no Instagram dedicado aos conteúdos produzidos pelo sistema de IA que a equipe do candidato construiu. Nesse perfil, Massa foi retratado com um homem forte e carismático, com vídeos que trabalharam o candidato como um soldado de guerra e herói de filmes como Star Wars e Jurassic Park. Por sua vez, o candidato Javier Milei, oponente de Massa nas eleições argentinas, foi retratado como uma pessoa instável e inserido em filmes como Laranja Mecânica.

No entanto, o cenário que mais chamou a atenção foi a construção por parte da campanha de Massa de um vídeo em que Milei conta o funcionamento de um mercado de órgãos humanos, enquadrando-o na sua visão libertária. O vídeo postado pelo candidato Massa em suas redes sociais causou polêmica e foi acusado de se tratar de uma deep fake, já que Milei jamais teria explicado o funcionamento de um mercado de órgãos.

A campanha de Massa explicou no post do Instagram que pediram para IA ajudar o candidato Milei a explicar o funcionamento de vendas de órgãos, sendo o vídeo postado o resultado da resposta da IA.
Da outra parte, apoiadores de Milei circularam um vídeo em que Sergio Massa seria filmado consumindo drogas, fato este que Massa falou que nunca aconteceu.

É curioso notar como a utilização da IA teve um tom agressivo e não trabalhou sobre a proposta dos candidatos. A IA poderia ter sido utilizada para mostrar a construção de uma ponte/rodovia/estrada em pleno funcionamento, como uma ferramenta de visualização da promessa da campanha eleitoral do candidato.

Diante do cenário dos potenciais impactos lesivos da IA nas eleições, tendo em mente as eleições municipais brasileiras de 2024, o Tribunal Superior Eleitoral editou recentemente a Resolução nº 23.732/2024, que trouxe novos ordenamentos para propaganda eleitoral, como: proibição de deep fakes, obrigação de aviso de IA quando usada na propaganda eleitoral (rótulo de IA), a restrição do uso de IAs intermediando o contato com o eleitor (chatbot simulando ser o candidato) e responsabilização de big techs que não retirarem conteúdo falso, discursos de ódio, antidemocráticos, homofóbicos ou de ideologia nazista ou fascista.

O art. 9-b e incisos da Resolução traz um rol de requisitos a serem apresentados junto ao conteúdo produzido pela IA na propaganda eleitoral.

Art. 9º-B. A utilização na propaganda eleitoral, em qualquer modalidade, de conteúdo sintético multimídia gerado por meio de inteligência artificial para criar, substituir, omitir, mesclar ou alterar a velocidade ou sobrepor imagens ou sons impõe ao responsável pela propaganda o dever de informar, de modo explícito, destacado e acessível que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e a tecnologia utilizada.
§ 1º As informações mencionadas no caput deste artigo devem ser feitas em formato compatível com o tipo de veiculação e serem apresentadas:
I – no início das peças ou da comunicação feitas por áudio;
II – por rótulo (marca d’água) e na audiodescrição, nas peças que consistam em imagens estáticas;
III – na forma dos incisos I e II desse parágrafo, nas peças ou comunicações feitas por vídeo ou áudio e vídeo;
IV – em cada página ou face de material impresso em que utilizado o conteúdo produzido por inteligência artificial.
§2º O disposto no caput e no §1º deste artigo não se aplica:
I – aos ajustes destinados a melhorar a qualidade de imagem ou de som;
II – à produção de elementos gráficos de identidade visual, vinhetas e logomarcas;
III – a recursos de marketing de uso costumeiro em campanhas, como a montagem de imagens em que pessoas candidatas e apoiadoras aparentam figurar em registro fotográfico único utilizado na confecção de material impresso e digital de propaganda.

§ 3º O uso de chatbots, avatares e conteúdos sintéticos como artifício para intermediar a comunicação de campanha com pessoas naturais submete-se ao disposto no caput deste artigo, vedada qualquer simulação de interlocução com a pessoa candidata ou outra pessoa real.

Desta forma, o candidato pode realizar a construção de conteúdos por meio da IA que coadunem com suas propostas eleitorais, permitindo ao eleitor, por exemplo, a visualização das promessas de melhorias no município, como a construção de uma praça, pavimentação de rua, maior mobilidade urbana.

Por outro lado, cabe ressaltar que no artigo 9-c, §1º, da referida resolução há a vedação expressa da divulgação de deep fake, entendida como: “o uso, para prejudicar ou para favorecer candidatura, de conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia (deep fake)”.

Um exemplo desse ponto é o candidato realizar a construção de um cenário manipulado em que coloca o candidato adversário recebendo valores indevidos e cometendo atos ilícitos. Ou até mesmo a construção de um cenário em que a campanha insira o candidato recebendo falsamente apoio de um político com muita influência, de modo que o favorecerá na corrida eleitoral.

Importante que as campanhas dos candidatos em 2024 tenham atenção quanto a esse ponto, uma vez que o desrespeito ao dispositivo pode acarretar o abuso de poder político e eventual cassação do registro ou mandato, conforme disposto no art. 9º-c, §2º, da aludida resolução.

No mais, no tocante à atuação das plataformas de redes sociais (por exp. Facebook, Instagram, WhatsApp, Telegram), a resolução também impõe obrigações durante o pleito eleitoral.

O art. 9º-D diz que “é dever do provedor de aplicação de internet, que permita a veiculação de conteúdo político-eleitoral, a adoção e a publicização de medidas para impedir ou diminuir a circulação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que possam atingir a integridade do processo eleitoral”.

Assim, os provedores devem remover qualquer conteúdo que atinja a integridade do processo eleitoral, sob pena de responder solidariamente, civil e administrativamente, quando não promoverem a indisponibilização imediata do conteúdo (art. 9-E).

É preciso ponderar que há o risco dessa regra resultar na proatividade das plataformas bloquearem conteúdos de maneira indiscriminada, em razão do receio de serem responsabilizadas. O termo “indisponibilização imediata” do conteúdo pelas plataformas, previsto no art. 9-E, somado ao dever imposto de as plataformas diminuírem a circulação de fatos notoriamente inverídicos, previsto no art. 9-D, cria um cenário de alta vigilância.

As eleições municipais de 2024 representarão um importante teste para a aplicação da Resolução 23.732/2024 do TSE. Um dos maiores desafios será garantir a fiscalização e o cumprimento dessa resolução. Embora existam medidas preventivas para evitar o uso inadequado da inteligência artificial (IA), o verdadeiro desafio será distinguir entre o uso indevido da IA e sua aplicação legítima como uma ferramenta já incorporada à nossa realidade.

Pietro Loretti Vaccaro, advogado, graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –PUC/SP e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela FGV/SP. Atuou em grandes escritórios paulistas e sua última experiência foi na assessoria da Secretaria-Executiva do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Possui experiência em direito penal, administrativo e políticas públicas.


Notas de Referência:

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