PEC 66/2023: O Risco de um passivo bilionário

A Proposta de Emenda à Constituição nº 66/2023, aprovada em primeiro turno no Senado Federal em julho passado, introduz alterações importantes no regime de atualização monetária dos precatórios. Contudo, a inclusão, no texto, do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acrescido de juros simples de 2% ao ano pode configurar uma das maiores armadilhas fiscais da história brasileira, com um risco jurídico e financeiro que merece a mais detida atenção.

A mudança proposta

A PEC altera simultaneamente dois dispositivos constitucionais fundamentais. O artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a determinar que precatórios de Estados, Distrito Federal e Municípios sejam atualizados pelo IPCA mais 2% de juros simples anuais, com a Taxa Selic funcionando como teto. Paralelamente, o artigo 3º da proposta modifica a Emenda Constitucional nº 113/2021, estendendo a mesma metodologia aos precatórios federais.

Essa unificação metodológica abrange, portanto, todo o sistema federativo brasileiro. Segundo dados que constam no Balanço Geral da União (BGU) de 2024, o estoque de precatórios, alcançava já R$ 131 bilhões. Por sua vez, em 17 estados e o Distrito Federal o valor, em 2024, era de R$ 115,5 bilhões, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Precatórios (IBP).

O precedente constitucional

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal oferece sinais inequívocos sobre a inconstitucionalidade da medida, e é aqui que reside o cerne do risco jurídico. A Corte já se manifestou de forma contundente em decisões anteriores, como nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4.357 e 4.425, que declararam inconstitucional dispositivo similar da Emenda Constitucional nº 62/2009. Naquela ocasião, o STF considerou inadequada a utilização da Taxa Referencial (TR) acrescida de juros da poupança para atualização de precatórios, sob o fundamento central de que tal indexador não preservava o valor real do crédito.

Mais recentemente, em outubro de 2024, o Plenário do STF decidiu o Recurso Extraordinário 1.515.163, com repercussão geral (Tema 1335), estabelecendo interpretação definitiva sobre a aplicação da Emenda Constitucional 113/2021. A tese fixada determinou que “não incide a taxa SELIC, prevista no art. 3º da EC nº 113/2021, no prazo constitucional de pagamento de precatórios do § 5º do art. 100 da Constituição” e que “durante o denominado ‘período de graça’, os valores inscritos em precatório terão exclusivamente correção monetária”.

O ministro Luís Roberto Barroso fundamentou que a Selic engloba juros e correção monetária, de modo que sua aplicação durante o período de graça implicaria reconhecer atraso no pagamento pela Fazenda Pública. Essa interpretação confirma, por via reflexa, que após o período de graça – quando há mora efetiva –, a Selic constitui o indexador adequado para integral reparação do credor.

O período de graça, previsto no § 5º do artigo 100 da Constituição Federal, compreende o intervalo entre a expedição do precatório (até 1º de julho) e o pagamento até o final do exercício seguinte. Durante esse prazo, aplica-se exclusivamente correção monetária pelo IPCA-E. Ultrapassado esse período, quando a Fazenda Pública incorre em mora, a jurisprudência reconhece a Selic como indexador que compensa tanto a inflação quanto o custo de oportunidade do capital.

A proposta da PEC 66/2023 de aplicar IPCA acrescido de juros simples de 2% ao ano, mesmo após o período de graça, fragmenta essa remuneração e, em cenários de juros reais mais elevados, pode ser significativamente inferior à remuneração proporcionada pela Selic. Os juros simples, por não capitalizarem sobre o valor já atualizado, tendem a diluir o ganho do credor ao longo do tempo, configurando uma desvalorização velada do crédito. Essa desvalorização violaria o direito de propriedade (Art. 5º, XXII da CF) e o princípio da efetividade das decisões judiciais, que pressupõe a integralidade do crédito reconhecido em juízo.

O STF, ao decidir o RE 1.515.163, demonstrou que sua preocupação central está preservação do valor real dos créditos e na coerência do sistema constitucional. A Corte tem demonstrado uma tendência clara de garantir que a atualização dos precatórios não seja utilizada como mecanismo de desvalorização do passivo público, buscando uma correção que seja verdadeiramente justa e que não penalize o credor pela demora do Estado em cumprir suas obrigações.

Ademais, a proposta cria uma disparidade sistemática entre a forma como o Estado cobra seus créditos e paga seus débitos. Enquanto a Fazenda Pública utiliza a Taxa Selic para atualizar tributos em atraso, débitos previdenciários e demais créditos públicos, pretende-se aplicar uma metodologia distinta – e presumivelmente menos onerosa – para seus próprios débitos judiciais. Essa assimetria viola frontalmente o princípio constitucional da isonomia, que exige tratamento igualitário perante a lei. A percepção de que a PEC busca uma “economia” à custa dos credores, sem aplicar o mesmo rigor aos seus próprios recebíveis, pode minar a confiança do cidadão na equidade do sistema e na seriedade do compromisso estatal com suas obrigações judiciais.

A quantificação do risco

Para dimensionar o impacto financeiro potencial decorrente da escolha de indexadores distintos, pode-se observar a evolução histórica da Taxa Selic em comparação ao IPCA. Entre 2010 e 2024, a Selic oscilou entre 2% e 14,25% ao ano, com uma média aproximada de 9,85% a 10,25% a.a., segundo dados do Banco Central do Brasil. No mesmo período, o IPCA apresentou uma média de aproximadamente 6,1% a.a.. Assim, a Selic superou o IPCA em cerca de 3,5 a 4 pontos percentuais ao ano, em média. Aplicando-se esse diferencial médio (com os 2% adicionados ao IPCA considerados na PEC 66/2023) ao estoque atual de precatórios da União junto com 17 estados e o Distrito Federal estimado em R$ 246,5 bilhões, o impacto anual pode ser estimado em aproximadamente R$ 8,6 bilhões a R$ 9,9 bilhões.

Projetando-se um cenário em que a PEC 66/2023 vigore por dez anos antes de eventual declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, o passivo acumulado decorrente da diferença entre os indexadores pode ultrapassar R$ 130 bilhões, considerando-se a capitalização composta anual sobre os valores não pagos, com base em um impacto anual entre R$ 8,6 bilhões e R$ 9,9 bilhões. A esse montante, somar-se-iam os honorários advocatícios de sucumbência, estimados entre 10% e 20% do valor principal, bem como correções monetárias, o que representaria um acréscimo exponencial ao valor devido.

O precedente do FGTS: um alerta contemporâneo

A experiência recente com a correção do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) oferece um paralelo instrutivo e preocupante. Conforme reportagem do Consultor Jurídico de junho de 2024, mais de 700 mil ações tramitam na Justiça Federal questionando a correção do FGTS pela Taxa Referencial (TR). Apenas em 2023, 404 mil novos processos sobre a matéria deram entrada nas varas federais, e em fevereiro de 2024, 786 mil processos aguardavam decisão do Supremo sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.090. Na época, a Advocacia-Geral da União argumentava que eventual substituição da forma de correção ocasionaria impacto de R$ 661 bilhões. Esse precedente demonstra como medidas aparentemente técnicas podem produzir consequências fiscais de magnitude macroeconômica.

A armadilha fiscal

O paradoxo central da PEC 66/2023 reside na possibilidade de que uma medida destinada a aliviar as contas públicas produza, no médio prazo, um passivo superior ao benefício inicialmente obtido. Se o Supremo Tribunal Federal mantiver sua jurisprudência – como sugerem os precedentes analisados -, os entes federativos enfrentarão não apenas a obrigação de pagar as diferenças retroativas, mas também os custos processuais e os honorários decorrentes de uma nova onda de litígios constitucionais.

A experiência histórica brasileira demonstra que atalhos legislativos que fragilizam direitos consolidados tendem a gerar custos exponencialmente superiores aos benefícios de curto prazo. A PEC 66/2023, ao alterar a metodologia de atualização de precatórios sem justificativa técnica robusta, pode configurar mais um episódio dessa trajetória de decisões fiscalmente contraproducentes.


Augusto Guerra Martins, advogado, com graduação em Direito e pós-graduação em Direito Administrativo pelo IDP. Possui experiência em atuação estratégica em Brasília, facilitando o diálogo entre empresas privadas e o setor público, com assessoramento nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Atuou como Auxiliar Jurídico no Supremo Tribunal Federal, em gabinete de ministro, elaborando decisões em diversas áreas.

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