- O que são as agências reguladoras e qual o seu papel
As agências reguladoras são autarquias especiais criadas a partir da década de 1990, em um contexto de profundas transformações econômicas e institucionais do país. Embora a Constituição de 1988 tenha estabelecido as bases para a descentralização administrativa e para a criação de órgãos com maior autonomia técnica, foi durante as reformas do Estado conduzidas nos anos 1990, especialmente no âmbito do Programa Nacional de Desestatização (PND), que nasceram as primeiras agências.
Nesse contexto, entre 1990 e 2015, o Brasil privatizou 99 empresas, arrecadando cerca de US$ 54,5 bilhões.[i] A abertura de setores estratégicos, como energia elétrica, petróleo e gás, exigiu instituições independentes para supervisionar contratos de concessão e atrair investimentos privados. Nesse cenário, foram criadas, entre outras, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL, em 1996, pela Lei nº 9.427) e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP, em 1997, pela Lei nº 9.478). Posteriormente, em 2001, surgiu a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ, pela Lei nº 10.233), responsável pela regulação de portos e transporte aquaviário, setor essencial para a logística de combustíveis.
O modelo brasileiro se inspirou em experiências internacionais, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, onde órgãos independentes assumiam funções de regulação em setores estratégicos. No Brasil, a lógica foi semelhante: diante da abertura do mercado e da necessidade de atrair investimentos privados para infraestrutura, era essencial que existisse um ente técnico e estável, capaz de assegurar previsibilidade, segurança jurídica e equilíbrio entre interesses públicos e privados.
As agências foram concebidas como autarquias de regime especial, com características singulares: autonomia administrativa, financeira e orçamentária; dirigentes com mandatos fixos; e a missão de regulamentar, fiscalizar e mediar conflitos nos setores em que atuam.
Além da função normativa e de fiscalização, essas agências desempenham papel central na proteção ao consumidor, no estímulo à concorrência, na garantia da segurança jurídica de contratos de longo prazo e no apoio à transição energética. Em resumo, as agências reguladoras surgiram para serem guardiãs do equilíbrio: assegurar o funcionamento de mercados complexos, proteger o consumidor, promover a concorrência e estimular a eficiência, sem perder de vista o interesse público.
- A perda de força e orçamento: desafios das últimas décadas
Apesar de sua relevância, as agências reguladoras passaram, ao longo dos anos, por um processo gradual de enfraquecimento. Parte desse fenômeno decorre de restrições orçamentárias impostas ao setor público, intensificadas a partir da década de 2010, quando o Brasil enfrentou sucessivas crises fiscais.
Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), entre 2014 e 2020 o orçamento das agências federais caiu, em média, 30% em termos reais, ajustados pela inflação. Na prática, isso significou menos capacidade de investimento, manutenção da estrutura e realização de atividades de fiscalização. A ANEEL, por exemplo, teve orçamento autorizado de R$ 260 milhões em 2022, mas conseguiu executar apenas 70% desse valor em razão de contingenciamentos [Fonte: ANEEL, Relatório de Gestão, 2022]. Já a ANP enfrentou dificuldades semelhantes, com orçamento de cerca de R$ 200 milhões em 2022, insuficiente para cobrir todas as despesas de fiscalização em campo.
Outro fator crítico é o déficit de pessoal. Muitos concursos públicos deixaram de ser realizados, gerando escassez de quadros técnicos e sobrecarga das equipes existentes. Em 2023, a ANEEL operava com apenas 550 servidores, número 40% abaixo da capacidade ideal de 900. Na ANP, o quadro contava com 700 servidores, mas com defasagem estimada de 25% em cargos técnicos especializados.
Essa carência compromete diretamente a efetividade da fiscalização, uma vez que, apesar dos esforços das agências, a capacidade de fiscalização ainda é limitada frente à dimensão do mercado, reforçando a importância do fortalecimento institucional para proteger consumidores e empresas que atuam de forma regular.
Além dos desafios orçamentários e de pessoal, a autonomia institucional das agências tem sido frequentemente pressionada por interferências políticas. Um exemplo emblemático foi a crise tarifária de 2014-2015, quando o governo federal pressionou a ANEEL a conter reajustes de tarifas de energia elétrica, resultando em desequilíbrios financeiros que custaram bilhões de reais ao setor elétrico. No caso da ANP, decisões relacionadas aos preços dos combustíveis também foram alvo de pressões políticas, especialmente durante períodos de alta da gasolina, que chegou a R$ 7,39 por litro em 2022.[ii]
Há ainda a dificuldade de atualização regulatória frente a mudanças tecnológicas e de mercado. A rápida expansão da geração distribuída e a evolução de tecnologias como redes inteligentes e veículos elétricos exigem regulamentações ágeis. No entanto, a falta de recursos e de corpo técnico adequado retarda a criação dessas normas, gerando lacunas regulatórias.
Exemplos concretos demonstram o impacto desse enfraquecimento:
- ANP: em 2022, a agência identificou 1.211 casos de adulteração de combustíveis em todo o país, envolvendo irregularidades como mistura de produtos fora das especificações e venda de combustíveis abaixo da qualidade regulamentada. Apesar das ações de fiscalização, a capacidade limitada da agência fez com que algumas fraudes persistissem, afetando tanto os consumidores quanto as empresas que atuam de forma regular.[iii]
- ANEEL: Durante a crise hídrica de 2021, considerada a mais grave em 91 anos, a ANEEL precisou implementar medidas emergenciais para garantir o fornecimento de energia, incluindo o acionamento de usinas termelétricas e a criação da bandeira tarifária “Escassez Hídrica”, que acrescentou R$ 14,20 por 100 kWh consumidos, representando aumento médio de 6,78% na tarifa dos consumidores regulados. Além disso, o leilão de contratação emergencial de energia teve custo estimado de R$ 39 bilhões, com potencial impacto tarifário de até 4,5% nos três anos seguintes.[iv]
- ANTAQ: entre 2018 e 2022, enfrentou práticas anticompetitivas em portos, como cobrança de taxas indevidas, que elevaram os custos logísticos em 15% [Fonte: ANTAQ, Relatório de Gestão, 2022].
Portanto, a perda de força das agências não se deve apenas a restrições orçamentárias, mas resulta de uma combinação de fatores políticos, institucionais e econômicos que minam sua efetividade. As consequências são graves: menor fiscalização, maior espaço para fraudes, insegurança para investidores e prejuízo para a competitividade e a lisura dos setores regulados.
- Por que fortalecer as agências: segurança, combate à fraude e competitividade
O fortalecimento das agências reguladoras é um tema de interesse direto das empresas que atuam de forma lícita e transparente. Quanto mais sólidas forem as instituições regulatórias, maiores são as garantias de que todos os agentes econômicos estarão sujeitos às mesmas regras, diminuindo o espaço para práticas irregulares e para a concorrência desleal.
No setor de combustíveis, a ANP desempenha papel central no combate a fraudes como adulteração, sonegação e comercialização irregular de produtos. Em 2024, a agência realizou 17.341 ações de fiscalização, resultando em 4.600 autos de infração, conforme divulgado no Boletim Anual de Fiscalização 2024.[v] No entanto, a limitação de recursos restringe sua capacidade de atuação. Estima-se que fraudes e sonegação de combustíveis gerem perdas de R$ 52 bilhões em tributos federais entre 2020 e 2024, conforme informações da Receita Federal.[vi] Isso prejudica diretamente tanto os consumidores quanto as empresas que cumprem rigorosamente suas obrigações legais. O fortalecimento da ANP, portanto, significa mais proteção ao mercado formal e mais segurança ao consumidor final.
A ANEEL, por sua vez, tem a responsabilidade de regular um setor em franca transformação, em que a expansão das energias renováveis, a descentralização da geração e a modernização das redes exigem respostas rápidas e fundamentadas. Entre 2010 e 2023, os leilões de energia regulados pela agência atraíram R$ 200 bilhões em investimentos, com 90% dos projetos concluídos dentro do prazo, conforme informações da ANEEL.[vii] Além disso, a matriz elétrica brasileira conta hoje com 89,5 milhões de consumidores, e a expansão das renováveis tem crescido a uma taxa de 12% ao ano entre 2018 e 2023, conforme dados da EPE.[viii] A solidez da ANEEL é, portanto, condição indispensável para dar previsibilidade aos investidores e estabilidade a projetos de longo prazo, essenciais em infraestrutura elétrica.
No caso da ANTAQ, a agência regula um setor que responde por 95% das exportações de petróleo e derivados do Brasil, movimentando US$ 50 bilhões em 2022, conforme dados da própria agência.[ix] Também supervisiona a logística de combustíveis e derivados em 37 portos públicos e 200 terminais privados, um sistema que movimentou 1,2 bilhão de toneladas de cargas em 2022, segundo o Anuário Estatístico Portuário da ANTAQ.[x] Seu fortalecimento institucional contribui para padrões de segurança, concorrência leal e integridade nas operações, reduzindo custos logísticos e aumentando a competitividade nacional.
Vale destacar, ainda, que o fortalecimento das agências reguladoras reforça o próprio ambiente democrático. Ao garantir decisões técnicas, baseadas em evidências e não em pressões conjunturais, elas ampliam a confiança no Estado e reduzem incertezas jurídicas.
Relatórios setoriais indicam que a limitação de recursos compromete significativamente a atuação dessas instituições, impactando diretamente a proteção ao consumidor e a competitividade de empresas que atuam de forma legal e transparente. Investir na autonomia financeira e técnica das agências é, portanto, estratégico para garantir previsibilidade, segurança jurídica e integridade regulatória, pilares essenciais para o desenvolvimento sustentável do setor energético brasileiro.
Trata-se, portanto, de um círculo virtuoso: mais autonomia e recursos significam mais fiscalização, menos fraudes, mais segurança jurídica e maior competitividade para quem atua corretamente.
- Conclusão: uma agenda necessária
O debate sobre as agências reguladoras, muitas vezes restrito ao campo técnico, precisa ganhar espaço na agenda pública. Em um país que busca atrair investimentos, diversificar sua matriz energética e avançar na transição para uma economia de baixo carbono, a existência de instituições regulatórias fortes e respeitadas é condição essencial.
Fortalecer as agências significa investir em autonomia, recursos e capacidade técnica, garantindo segurança jurídica, fiscalização efetiva e previsibilidade regulatória. Esses elementos são fundamentais para proteger os consumidores, reduzir fraudes e criar um ambiente de negócios saudável, onde empresas que atuam com eficiência, inovação e conformidade são beneficiadas.
Em um momento em que o Brasil se prepara para sediar a COP30, o fortalecimento institucional das agências deve ser visto como parte da agenda climática e energética. Mais do que um tema regulatório, trata-se de uma estratégia de Estado para posicionar o país como protagonista na transição energética, atraindo investimentos e oferecendo segurança econômica e jurídica para as próximas décadas.
Investir no fortalecimento das agências reguladoras é, portanto, investir no desenvolvimento sustentável do Brasil, com mercados mais íntegros, maior competitividade empresarial e benefícios concretos para o consumidor final.
Renata Assunção, advogada, graduada pelo UniCEUB, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDP. Possui experiência de atuação em Tribunais Superiores, em especial nas áreas de Direito Eleitoral, Constitucional e Administrativo. Ocupou o cargo de Secretária Especial de Assuntos Federativos substituta e de assessora parlamentar da Secretaria Especial de Assuntos Federativos da Presidência da República. Possui experiência na atuação perante o Congresso, tendo trabalhado como assessora parlamentar na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
[i] https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/desestatizacao/projetos-encerrados/privatizacao-federais-pnd
[ii] https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/arq-sintese-semanal/2022/junho/sintese-precos-n25.pdf
[iii] https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins-anp/boletins/bfan/boletim-fiscalizacao-n23.pdf
[iv] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/aneel-faz-novo-reajuste-em-taxa-extra-da-conta-de-luz-em-meio-a-crise-hidrica
[v] https://www.gov.br/anp/pt-br/canais_atendimento/imprensa/noticias-comunicados/anp-realiza-mais-de-17-mil-acoes-de-fiscalizacao-em-2024-com-4-6-mil-autuacoes
[vi] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2025/agosto/operacao-carbono-oculto-rrb-e-orgaos-parceiros-combatem-organizacao-responsavel-por-sonegacao-e-lavagem-de-dinheiro-no-setor-de-combustiveis
[vii] https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2023/com-todos-os-lotes-negociados-leilao-no-1-2023-e-o-maior-da-aneel-em-numeros-absolutos
[viii] https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/balanco-energetico-nacional-2023
[ix] https://hubdeprojetos.bndes.gov.br/pt/setores/Portos
[x] https://www.gov.br/antaq/pt-br/noticias/2023/setor-portuario-movimenta-mais-de-1-2-bilhao-de-toneladas-em-2022