Durante muito tempo, o contencioso foi sinônimo de enfrentamento. Litigar contra o Estado significava resistir, questionar, buscar reparação. Mas o Direito Público brasileiro amadureceu — e com ele, o papel do advogado. Hoje, a boa litigância não é apenas reação: é estratégia. É também uma forma de participar da formulação e aperfeiçoamento de políticas públicas.
Ou, pelo menos, deveria ser. Na prática, ainda há resistência cultural e institucional à resolução consensual de conflitos. O modelo de disputa — com suas formalidades, recursos e ritos extensos — ainda exerce forte atração sobre gestores e operadores do Direito. Superar essa lógica não é simples: exige mudança de mentalidade, tanto do Estado quanto dos particulares.
Mesmo assim, é inegável o avanço de uma nova cultura de solução de controvérsias. A chamada “justiça multiportas” — conceito que ganhou corpo no Poder Judiciário e vem sendo incorporado também nas relações administrativas — propõe a coexistência de diferentes vias de resolução: mediação, conciliação, negociação, arbitragem, termos de ajustamento, acordos administrativos. Cada uma delas adequada a um tipo de conflito, com o objetivo comum de entregar resultados mais ágeis, técnicos e sustentáveis.
A “justiça multiportas” não é apenas um slogan: trata-se de um sistema que integra métodos e ambientes diversos (negociação, conciliação, mediação, arbitragem, termos de ajustamento e vias judiciais) para o tratamento adequado dos conflitos, com primazia das soluções consensuais. No Brasil, esse arranjo ganhou contornos institucionais com a Resolução CNJ nº 125/2010, que estruturou NUPEMECs e CEJUSCs e impulsionou a cultura de prevenção e autocomposição no setor público e privado (NAVARRO, 2023).
Do ponto de vista dogmático, a teoria apresenta traços úteis para setores regulados: é sistêmica (organiza normas, procedimentos e técnicas de solução), expansiva (aberta a novos instrumentos e arranjos híbridos), democrática (acessível a diferentes tipos de conflito) e humanizadora (desloca o foco do rito para o problema concreto). Esses atributos ajudam a explicar por que acordos administrativos e compromissos de conformidade tendem a produzir resultados mais estáveis e executáveis do que decisões exclusivamente adjudicadas em litígios prolongados (NAVARRO, 2023).
A concepção de múltiplas portas não é uma peculiaridade brasileira. Ela remonta à proposta do multi-door courthouse de Frank Sander, que inspirou sistemas de triagem e encaminhamento do conflito ao método mais adequado (SANDER, 1979). No Brasil, Kazuo Watanabe foi decisivo para traduzir essa lógica em política judiciária e estrutura organizacional (NUPEMECs/CEJUSCs), consolidada na Resolução CNJ nº 125/2010 (WATANABE, 2016; CNJ, 2010).
Do ponto de vista teórico, a literatura processual sistematizou o modelo como sistema de justiça multiportas, com características interativas e auto-organizadas que combinam meios autocompositivos e heterocompositivos conforme a natureza do conflito (DIDIER JR.; FERNANDEZ, 2023; ZANETI JR.; CABRAL, 2022). Em paralelo, a tradição de Ada Pellegrini Grinover reforça a virada da “processualidade” para a tutela efetiva do direito material, o que dialoga diretamente com o desenho procedimental proporcional e cooperativo do CPC/2015 (GRINOVER, 2016; BRASIL, 2015).
Há, ainda, um eixo tecnológico e gerencial que sustenta essa mudança cultural: Richard Susskind destaca que sistemas de justiça eficazes não apenas resolvem disputas, mas contêm, evitam e organizam conflitos, com apoio de tecnologia e desenho institucional (SUSSKIND, 2019). No âmbito administrativo, a Lei de Mediação (Lei 13.140/2015), a LINDB (art. 26, Lei 13.655/2018) e a Lei 14.133/2021 (arts. 151-154) impulsionam mediação, acordos e comitês de resolução de disputas; no setor portuário e de transportes, o Decreto 10.025/2019 viabiliza a arbitragem com a Administração — tudo na direção de uma governança de conflitos que une contencioso estruturante e consensualidade.
Quanto aos efeitos práticos já mapeados, tem-se: (i) quebra do monopólio da jurisdição estatal sobre a resolução de disputas, com reconhecimento da equivalência e complementaridade entre métodos autocompositivos e heterocompositivos; (ii) reorientação do acesso à justiça — do “processo” para o “conflito” — privilegiando desenho procedimental proporcional à complexidade; e (iii) legitimidade ampliada das soluções, com menor risco de descumprimento quando o resultado é coproduzido pelas partes (NAVARRO, 2023).
No campo público, a diretriz multiportas transborda o Judiciário e alcança a Administração: além de mediação e conciliação administrativas, a literatura aponta o dever de estruturar câmaras de prevenção e resolução de conflitos e políticas de desjudicialização, especialmente em matérias de alta complexidade regulatória — movimento coerente com a busca de eficiência, accountability e segurança jurídica (NAVARRO, 2023).
Em setores complexos — como infraestrutura, energia, saúde e portos —, a atuação técnica em tribunais e agências não se resume a defender um interesse privado. Muitas vezes, o advogado atua para corrigir distorções regulatórias, provocar coerência jurisprudencial e aprimorar a interpretação normativa. O contencioso, nesse sentido, passa a ter função pública: ajuda a consolidar precedentes e práticas que orientam o próprio poder público.
Para a advocacia que atua em infraestrutura, portos, energia e saúde, isso se traduz em governança de conflitos: mapear incentivos, escolher a “porta” adequada, escalonar métodos (do diálogo ao contencioso estruturante) e costurar acordos tecnicamente ancorados. Em síntese, a justiça multiportas fornece o substrato técnico para afirmar que litigância estratégica e consensualidade administrativa são complementares na construção de políticas públicas efetivas (NAVARRO, 2023).
Mas o mesmo movimento que sofisticou o contencioso trouxe também uma mudança de mentalidade. Ao lado da litigância estratégica, cresce a consensualidade nas relações jurídicas. Termos de ajustamento, acordos administrativos, compromissos de compliance e soluções negociais ganharam espaço como instrumentos legítimos e eficientes de política pública.
O foco deixa de ser “quem tem razão” para se tornar “como resolver o problema de modo sustentável”.
Nesse cenário, o advogado moderno é mais do que um litigante habilidoso — é um agente de governança. Ele compreende o sistema regulatório, antecipa riscos e atua como mediador entre os interesses privados e o interesse público. Em vez de esperar o conflito, busca construir soluções capazes de dar previsibilidade às relações e estabilidade às políticas setoriais.
Essa transição — do contencioso ao consenso — não significa abrir mão da técnica ou da firmeza. Significa reconhecer que a segurança jurídica nasce tanto da jurisprudência consolidada quanto da maturidade institucional para dialogar. O contencioso estratégico e a consensualidade administrativa são, na verdade, duas faces da mesma advocacia de Estado: aquela que defende, propõe e constrói.
Em tempos de transformação regulatória e institucional, o verdadeiro desafio é equilibrar essas forças. Litigar quando necessário, compor quando possível, e sempre atuar com o olhar voltado ao fortalecimento das instituições. Esse é o novo papel do advogado — protagonista silencioso de políticas públicas mais estáveis, técnicas e democráticas.
Sayoa
nara Georgia Carrijo Cabral Mihalache, advogada pleno no escritório Perman Advogados Associados, onde atua no contencioso cível estratégico, com foco em processos de alta complexidade. Possui sólida formação acadêmica, com pós-graduações em Direito Empresarial, Direito Público, Direito Constitucional e Direito Processual Civil, além de experiência consolidada em litígios de grande repercussão e relevância institucional.
REFERÊNCIAS
- BRASIL. Lei de Mediação. Lei nº 13.140, de 26 jun. 2015.
- BRASIL. Lei nº 13.655, de 25 abr. 2018 (inclui art. 26 na LINDB).
- BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º abr. 2021 (arts. 151-154, meios alternativos).
- BRASIL. Decreto nº 10.025, de 20 set. 2019 (arbitragem em transportes/portos).
- CNJ. Resolução nº 125/2010. Política Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos.
- DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. O sistema brasileiro de justiça multiportas como um sistema auto-organizado. REPOJURN, v. 3, n. 1, 2023.
- GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaio sobre a processualidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016.
- NAVARRO, Trícia. Teoria da justiça multiportas. Revista de Processo. vol. 343. ano 48. p. 453-471. São Paulo: Ed. RT, setembro 2023. Disponível em: http://revistadostribunais.com.br/maf/app/document?stid=st-rql&marg=DTR-2023-9332. Acesso em: 07/11/2025
- SANDER, Frank E. A. Varieties of dispute processing. In: Pound Conference, 1976. (reimpressões em coletâneas).
- SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: OUP, 2019.
- WATANABE, Kazuo. “‘Juizados Especiais’ e a política judiciária de tratamento adequado dos conflitos”. In: BACELLAR, R. P.; LAGRASTA, V. F. (Coord.). Conciliação e mediação. São Paulo: IPAM/ENFAM, 2016.
- ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça Multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada de conflitos. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2022.
