O Brasil, com sua vocação inegável para as energias renováveis, avança mais um passo ambicioso em sua estratégia de descabornização. Em um movimento que promete redefinir o panorama do setor de gás natural, o Decreto nº 12.614, de 5 de setembro de 2025, institui os Certificados de Garantia de Origem do Biometano (CGOBs). A ferramenta promete impulsionar o biometano, criando oportunidade para que os setores que utilizam gás natural possam elevar ainda mais seu padrão de descarbonização. Contudo, para os atentos observadores do mercado, a chegada dos CGOBs ressoa com a experiência já vivida pelos Créditos de Descarbonização (CBIOs) no âmbito do RenovaBio, um percurso igualmente inovador que, ao longo de sua implementação, ofereceu aprendizados sobre os desafios inerentes à criação de mercados de ativos ambientais.
Este artigo propõe uma reflexão sobre os CGOBs, ao analisar seus mecanismos e atores, e busca traçar paralelos construtivos com a jornada dos CBIOs. O objetivo não é apontar falhas, mas sim contextualizar potenciais áreas de atenção e estimular o debate estratégico entre os players do mercado, essenciais para a solidez e o sucesso dessa nova empreitada da economia verde brasileira.
Em sua essência, o CGOB opera como um atestado de sustentabilidade para o biometano. Imagine-o como um selo digital que certifica que uma determinada quantidade de gás foi produzida a partir de fontes orgânicas renováveis, como resíduos agrícolas ou urbanos. O Decreto nº 12.614/2025, em seu Art. 2º, inciso V, define esse “atributo ambiental” como a prova da renovabilidade da origem do biometano. Sua existência é uma peça central do Programa Nacional de Descarbonização, visando explicitamente o estímulo à produção e ao consumo de biogás e biometano.
Para que esse sistema funcione de forma efetiva, uma complexa rede de atores interage. O Emissor Primário, ou seja, o produtor ou importador de biometano, é quem gera o gás renovável e, consequentemente, tem o direito de solicitar a emissão dos CGOBs. Antes da emissão, um Agente Certificador de Origem, credenciado pela ANP, verifica e atesta a sustentabilidade do processo produtivo. Os Escrituradores, por sua vez, são responsáveis por formalizar a emissão dos CGOBs e registrar todas as transações, enquanto as Entidades Registradoras mantêm as plataformas eletrônicas que garantem o rastreamento e controle desses certificados digitais. No outro polo, estão os Agentes Obrigados – produtores e importadores de gás natural – que, por força legal, devem cumprir metas anuais de descarbonização estipuladas pelo governo. O Decreto estabelece que esses agentes obrigados devem adquirir o volume de biometano acompanhado dos respectivos CGOBs, ou adquirir CGOBs correspondentes às suas metas regulatórias (Art. 36º). O cumprimento da meta é comprovado pelo registro de aposentadoria do CGOB, permitindo que o agente obrigado cumpra sua obrigação sem necessariamente misturar biometano físico em suas operações, desde que adquira e aposente os certificados correspondentes ao volume de sua meta. Complementando o cenário, os Agentes Não Obrigados representam empresas e indivíduos que, por iniciativa voluntária, buscam esses certificados a fim de contabilizar redução de emissões.
Aqui, ressalta-se que o CGOB não é o gás em si, mas a prova documental de que uma quantidade equivalente de biometano renovável foi produzida e adicionada ao sistema. Ao ser utilizado para cumprir uma meta ou para uma declaração ambiental, o CGOB é “aposentado”, garantindo que seu benefício seja contabilizado uma única vez, um mecanismo importante para a integridade do sistema.
A chegada dos CGOBs convida a uma inevitável comparação com os CBIOs do RenovaBio. Ambos são instrumentos de mercado concebidos para impulsionar a redução de GEE e promover a energia renovável, compartilhando a lógica de metas compulsórias para setores específicos e a vitalidade da “aposentadoria” para evitar dupla contagem de benefícios. Contudo, suas diferenças são marcantes. Os CBIOs focam na descarbonização dos combustíveis fósseis utilizados no transporte (diesel e gasolina), com agentes obrigados sendo as distribuidoras de combustíveis. Já os CGOBs visam o setor de gás natural, um combustível que já desempenha papel estratégico na diversificação energética global, com a obrigação recaindo sobre os produtores e importadores de gás natural. Enquanto os CBIOs representam a redução de uma tonelada de CO₂ equivalente, os CGOBs são certificados de origem que atestam a produção de biometano renovável.
Como já adiantado, a trajetória dos CBIOs oferece um importante panorama de aprendizado para a consolidação dos CGOBs. O conhecimento prévio sugere que a fase de implementação de qualquer mercado regulado de ativos ambientais é naturalmente complexa e exige atenção constante a certos pontos.
Um dos desafios que se desenha é o controle de preços e a volatilidade do mercado de CGOBs. A experiência dos CBIOs revelou que a volatilidade pode emergir de duas frentes.
A primeira está relacionada a um problema regulatório. Nos CBIOs, a ausência de supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deixou lacunas de controle. Sem mecanismos robustos de acompanhamento de preços e sem obrigação legal para que produtores forneçam certificados regularmente, agentes puderam reter certificados para especular, amplificando artificialmente as oscilações de preço. Para os CGOBs, o novo decreto já contempla um diferencial: o Art. 26º estabelece que, no caso de comercialização de CGOBs em mercado de capitais, as regras de custódia e depósito centralizado serão disciplinadas pela CVM. Isso reduz significativamente o risco de especulação artificial. Contudo, permanece em aberto se a regulamentação complementar da ANP estabelecerá obrigações de fornecimento periódico de CGOBs ou criará limites de retenção que complementem a supervisão da CVM.
A segunda está relacionada a um problema estrutural. Quando a oferta de certificados não acompanha a demanda compulsória, pressões de preço emergem naturalmente – não por especulação, mas por escassez real. O mercado de biometano, embora promissor, ainda necessita de forte desenvolvimento de infraestrutura de produção e logística. O Decreto prevê metas ambiciosas – 1% em 2026, podendo alcançar 10% do volume de gás comercializado – e se a oferta não acompanhar esse ritmo, o mercado enfrentará pressões de preço causadas por insuficiência real de certificados, um cenário já vivenciado pelos CBIOs. A capacidade de calibração das metas pelo CNPE, considerando a “disponibilidade atual ou futura de biometano” (Art. 5º, I), e a agilidade da ANP em adaptar-se a essa dinâmica, serão de suma importância para evitar esse desequilíbrio.
A prevenção da judicialização também se impõe como um fator preponderante. Programas que impõem obrigações a setores inteiros e envolvem significativa movimentação financeira podem naturalmente gerar questionamentos e disputas legais. A experiência dos CBIOs ilustra como a judicialização pode desviar o foco dos objetivos ambientais principais. Para os CGOBs, a clareza e a equidade nos mecanismos de alocação de metas entre os agentes obrigados, a transparência nos processos de fiscalização e, particularmente, a definição precisa das condições para a aplicação de penalidades – ou para a isenção delas em casos de comprovada insuficiência de oferta (Art. 39º, § 2º) – são elementos que podem fortalecer ou fragilizar o programa. Um processo bem delineado e um diálogo contínuo entre os stakeholders serão aliados importantes para canalizar as energias do mercado para a redução de emissões, em vez de litígios.
Finalmente, a eficácia real na descarbonização e a prevenção de distorções merecem monitoramento. O CGOB, ao permitir a transação do atributo ambiental separadamente da molécula física, oferece uma flexibilidade estratégica. No entanto, é fundamental assegurar que esse mecanismo estimule efetivamente o aumento da produção física de biometano e que os investimentos se concretizem, garantindo um impacto tangível na redução das emissões do setor de gás.
Logo, os CGOBs se inserem como um novo componente na agenda de sustentabilidade brasileira. Com isso posto, a experiência dos CBIOs, marcada por complexidades, oferece um referencial para a análise do percurso que se inicia. Para os players do setor de gás, da produção de biometano e do mercado financeiro, este contexto demanda uma atenção estratégica. A compreensão das nuances regulatórias e a antecipação de potenciais cenários são aspectos relevantes para uma participação informada, contribuindo para a evolução de um panorama energético mais diversificado e alinhado aos objetivos de descarbonização do país. O sucesso dos CGOBs dependerá, assim, da coordenação institucional e da confiança do mercado, fatores que transformarão o potencial em resultados concretos para a contínua diversificação energética brasileira.
Augusto Guerra Martins, advogado, com graduação em Direito e pós-graduação em Direito Administrativo pelo IDP. Possui experiência em atuação estratégica em Brasília, facilitando o diálogo entre empresas privadas e o setor público, com assessoramento nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Atuou como Auxiliar Jurídico no Supremo Tribunal Federal, em gabinete de ministro, elaborando decisões em diversas áreas.
