Autarquização das empresas estatais

1) O que são as autarquias?

As autarquias são entidades da administração indireta, criadas por lei, dotadas de personalidade jurídica de direito público, com capacidade de autodeterminação, tendo especialização dos fins ou atividades e sujeitas a controle ou tutela, nos termos do art. 4º, II, a e art. 5º, I, do Decreto-Lei 200/67. Sua previsão consta no art. 41, IV, do Código Civil entre as pessoas jurídicas de direito público interno, não devendo ser confundidas com pessoas jurídicas públicas políticas (União, Estados e Municípios) – de modo que não possuem autonomia, mas autoadministração.

Por se sujeitarem ao regime jurídico de direito público, submetem-se ao regime jurídico de direito público, quanto à criação, extinção, poderes, prerrogativas, privilégios, sujeições. De forma elucidativa, Celso Antônio Bandeira de Mello as define como “pessoas jurídicas de direito público de capacidade exclusivamente administrativa”.

As autarquias não estão subordinadas hierarquicamente à Administração Pública Direta, mas se submetem a um controle finalístico denominado supervisão ou tutela ministerial. Esse grau de liberdade garante certa autonomia, porém não significa independência plena, já que permanece o vínculo com a Administração central.

No que se refere às suas atribuições, é importante destacar que as autarquias jamais exercem atividade econômica. De acordo com o art. 5º, I, do Decreto-lei n. 200/1967, somente podem desempenhar atividades típicas da Administração Pública, como a prestação de serviços públicos, o exercício do poder de polícia ou o fomento. Trata-se de uma impossibilidade conceitual: quando determinada atividade é legalmente atribuída a uma autarquia, ela deixa de integrar o domínio econômico e passa a ser considerada serviço público.

As autarquias gozam de imunidade tributária em relação aos impostos, conforme dispõe o art. 150, § 2º, da Constituição Federal. Essa imunidade não se estende a taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios ou contribuições especiais, que continuam sendo devidos.

Os bens das autarquias são classificados como bens públicos, conforme o art. 98 do Código Civil, e, por isso, gozam dos atributos de impenhorabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade. Ademais, os atos praticados por seus agentes têm natureza de atos administrativos, sendo dotados de presunção de legitimidade, imperatividade, exigibilidade e autoexecutoriedade.

Na celebração de ajustes com particulares, as autarquias firmam contratos administrativos, submetidos ao regime de direito público. Esse regime assegura posição de supremacia da Administração sobre os contratados, em razão do interesse público envolvido. No tocante a seu quadro de pessoal, o regime jurídico predominante é o estatutário, de modo que os agentes ocupam cargos públicos e são servidores estatutários, sendo a contratação celetista admitida apenas em situações excepcionais.

As autarquias também dispõem das prerrogativas processuais típicas da Fazenda Pública, como prazos em dobro para recorrer e contestar, isenção de custas processuais, execução de suas dívidas por precatórios e dispensa de procuração para seus representantes legais. Em matéria de responsabilidade civil, respondem objetiva e diretamente pelos danos causados por seus agentes, não sendo necessário comprovar dolo ou culpa. Nesse caso, é a própria entidade que deve ser demandada judicialmente, cabendo a responsabilidade subsidiária à Administração Direta apenas se a autarquia não tiver recursos para arcar com a indenização.

Além disso, as autarquias estão sujeitas ao controle dos tribunais de contas, devem observar as normas de contabilidade pública, não podem permitir a acumulação indevida de cargos e funções, realizam licitações para suas contratações e têm dirigentes nomeados em cargos em comissão de livre provimento e exoneração. Essas características reafirmam sua natureza de entidades administrativas dotadas de personalidade de direito público, criadas para desempenhar funções típicas do Estado com maior especialização e autonomia técnica.

2) O que são as empresas estatais ou governamentais?

As empresas estatais ou governamentais são todas as entidades, civis ou comerciais, de que o Estado tenha o controle acionário, diretamente ou por meio de outra entidade da administração indireta, abrangendo a empresa pública, a sociedade de economia mista e suas subsidiárias, além de outras empresas que não tenham essa natureza e às quais a Constituição faz referência, em vários dispositivos, como categoria à parte (arts. 37, XVII, 71, § 2º, 165, § 5º, II, 173, § 1º).

O artigo 173 da Constituição dispõe que, fora das hipóteses expressamente previstas no próprio texto constitucional, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado somente é admitida quando indispensável à segurança nacional ou motivada por relevante interesse coletivo, cabendo à lei definir o alcance dessas situações. Comparado ao regime da Constituição anterior — que autorizava a intervenção estatal apenas em caráter subsidiário à iniciativa privada —, houve ampliação da possibilidade de atuação direta, uma vez que a Constituição atual admite genericamente tais hipóteses, remetendo à legislação ordinária a tarefa de delimitar seus contornos.

O §1º do art. 173, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/1998, estabelece que lei específica deverá disciplinar o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica, tratando, entre outros pontos, de: (i) sua função e os mecanismos de fiscalização estatal e social; (ii) a submissão ao regime próprio das empresas privadas, inclusive em matéria civil, comercial, trabalhista e tributária; (iii) o regime de licitação e contratação, observados os princípios da Administração Pública; (iv) a constituição e funcionamento de conselhos de administração e fiscal, com participação dos acionistas minoritários; (v) os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores. Esse estatuto jurídico foi regulamentado pela Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais), complementada pelo Decreto nº 8.945/2016, de aplicação restrita ao âmbito da União.

Dessa previsão constitucional decorre, em primeiro lugar, que as empresas estatais que atuam no mercado em concorrência com o setor privado devem, em regra, seguir normas de direito privado. O direito público, nesse cenário, constitui exceção e só pode ser aplicado quando houver expressa previsão constitucional. A segunda consequência é que eventuais derrogações ao regime privado só podem ser admitidas quando a própria Constituição as autorizar de maneira explícita ou implícita, não cabendo à lei ordinária ampliar restrições.

Essas conclusões aplicam-se, contudo, apenas às empresas governamentais criadas para atuar em atividades tipicamente privadas, pois o art. 173 trata especificamente da exploração direta do domínio econômico pelo Estado. Quando a empresa estatal for instituída para prestar serviço público, aplicam-se as regras do art. 175 da Constituição, segundo o qual compete ao Poder Público assegurar, diretamente ou mediante concessão ou permissão, sempre precedida de licitação, a prestação de serviços públicos.

Assim, a empresa estatal prestadora de serviços públicos se assemelha a uma concessionária, estando sujeita às normas do art. 175 da CF, inclusive no que diz respeito à política tarifária, ao dever de prestar serviço adequado, à observância dos princípios da continuidade, da igualdade dos usuários e da mutabilidade do regime jurídico. Se uma empresa estatal é criada por um ente federado para prestar serviço público delegado por outro, atua como concessionária e deve seguir a Lei de Concessões (Lei nº 8.987/1995). É o caso, por exemplo, de serviços de energia elétrica — de competência da União, mas delegados a empresas estaduais — e do saneamento básico, prestado por sociedades de economia mista, como a SABESP, controlada pelo Estado de São Paulo e contratada por municípios.

Ao intérprete cabe harmonizar a legislação infraconstitucional com os parâmetros fixados pelos arts. 173 e 175 da Constituição. A jurisprudência tem reconhecido, cada vez mais, a distinção entre empresas estatais prestadoras de serviço público e aquelas voltadas à exploração direta da atividade econômica, o que repercute em temas como precatórios, natureza dos bens, imunidade recíproca e responsabilidade civil. Importa destacar que o art. 37, §6º, da CF, que prevê responsabilidade objetiva, aplica-se apenas às empresas estatais prestadoras de serviço público.

Embora a Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) não tenha diferenciado expressamente as estatais prestadoras de serviço público das que atuam no mercado, muitas de suas disposições só se aplicam, na prática, às empresas que exploram atividade econômica nos termos do art. 173, §1º, da CF. Caberá, portanto, ao intérprete realizar, em cada caso concreto, a separação entre os regimes, respeitando a natureza da atividade desempenhada.

3) Caráter empresarial das estatais

As empresas estatais – empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias – integram a Administração Indireta, mas possuem personalidade de direito privado. Ao atuarem no mercado, submetem-se, como regra, ao regime jurídico das empresas privadas, nos termos do art. 173, §1º, II, da Constituição, e da Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais).

Esse caráter empresarial significa que, embora criadas por lei autorizadora (CF, art. 37, XIX e XX), tais entidades exploram atividade econômica em concorrência com o setor privado, estando sujeitas a riscos de mercado, à disciplina concorrencial e às normas trabalhistas, civis e comerciais aplicáveis a qualquer empresa.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem preservado o modelo jurídico das empresas estatais ao julgar disputas relativas às limitações impostas quanto ao dever de licitar e à submissão ao controle dos tribunais de contas. A Corte não considera que a personalidade de direito privado dessas entidades seja incompatível com tais obrigações, entendendo, ao contrário, que elas podem coexistir sem comprometer a estrutura empresarial¹.

As empresas estatais possuem, de fato, o dever constitucional de licitar para contratar serviços e obras, bem como para alienar e adquirir bens (CF/88, art. 22, XXVII; art. 37, XXI; art. 173, §1º, III). O ponto central do debate não é a existência desse dever, mas a possibilidade de diferenciar o regime licitatório aplicável às estatais em relação ao das demais entidades da Administração Pública, de modo a atender suas especificidades empresariais.

Durante anos, a Lei 8.666/93 impôs às estatais as mesmas regras licitatórias aplicáveis a toda a Administração. Entretanto, diante da rigidez desse modelo, o legislador passou a editar normas que instituíram regimes de contratação simplificados, reconhecendo a natureza empresarial dessas entidades. A Lei do Petróleo (Lei 9.478/97) criou procedimento especial para a Petrobras, regulamentado pelo Decreto 2.745/98. Situações semelhantes ocorreram com a Empresa Brasil de Comunicação (Lei 11.652/08 e Decreto 6.505/08) e com a Eletrobrás (Lei 11.943/09).

Essas leis geraram questionamentos judiciais sobre sua constitucionalidade, em especial quanto à compatibilidade de regimes simplificados com o dever constitucional de licitar. Em decisões cautelares, o STF reconheceu a validade de tais modelos. No chamado Caso Petrobras (2006), a Corte suspendeu determinação do TCU que impunha à estatal a observância da Lei 8.666/93, permitindo a continuidade de licitações com base em regulamento próprio. O fundamento foi o ambiente de concorrência em que a empresa passou a atuar após a EC 9/95, o que justificaria maior flexibilidade licitatória. Pouco depois, em nova cautelar (Caso Petrobras 2006b), a Segunda Turma reiterou a posição, conferindo efeito suspensivo a decisão do STJ que havia invalidado o regulamento simplificado.
A questão da fiscalização das empresas estatais pelos tribunais de contas também foi objeto de intenso debate. Inicialmente, em 2002, o STF restringiu a incidência do controle externo às situações em que houvesse manejo de recursos públicos ou prejuízo ao Tesouro (Casos Banco do Brasil e BB-DTVM). Nessa visão, o patrimônio das estatais e de seus clientes era tratado como bem privado, insuscetível de fiscalização ampla.

Contudo, em 2005, a Corte revisou esse entendimento. Nos julgamentos dos casos CHESF e Banco do Nordeste, o STF afirmou que a submissão das estatais ao controle externo decorre diretamente de sua integração à Administração Indireta (CF/88, art. 49, X e art. 70, caput). Assim, seus administradores estão sujeitos à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial pelos tribunais de contas, independentemente da comprovação de prejuízo ao erário.

Essa mudança não significou a concessão de um “cheque em branco” aos órgãos de controle. O Supremo ressaltou que a fiscalização não pode implicar ingerência indevida nas estratégias empresariais das estatais nem substituir a atuação de seus gestores. Intervenções excessivas poderiam comprometer a competitividade e a eficiência, colocando as estatais em desvantagem diante de empresas privadas. Por isso, o STF destacou que abusos podem e devem ser corrigidos pelo controle judicial.

Em síntese, a atuação do STF preserva o caráter empresarial das estatais: reconhece-se que tais entidades, embora submetidas a limitações constitucionais próprias (licitação e controle externo), mantêm sua natureza de pessoas jurídicas de direito privado. O desafio é encontrar um ponto de equilíbrio: assegurar que estatais cumpram sua função pública, sem perder a agilidade e autonomia necessárias para competir no mercado em condições semelhantes às empresas privadas.

4) A autarquização das estatais

O Supremo Tribunal Federal tem desempenhado papel central na definição do regime jurídico das empresas estatais. Se, por um lado, preserva o seu caráter empresarial ao reconhecer a incidência diferenciada do dever de licitar e de se submeter ao controle externo, por outro, vem promovendo uma expansão de prerrogativas próprias das pessoas de direito público para determinadas estatais, especialmente as prestadoras de serviços públicos.

O STF reconheceu as prerrogativas da impenhorabilidade de bens e da imunidade tributária recíproca às empresas estatais de serviços públicos. Essas garantias são típicas das autarquias e demais pessoas de direito público, mas passaram a ser estendidas às estatais, em julgamentos como o Caso ECT (2000), no qual a Corte assegurou a proteção do patrimônio da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos contra constrições judiciais. Posteriormente, o entendimento foi replicado a outros entes, como Eletronorte, Emdur, Casal-AL e Ebda-BA, consolidando a tendência jurisprudencial.

No campo tributário, o STF também adotou posição semelhante ao afirmar a aplicabilidade da imunidade recíproca (CF, art. 150, VI, “a”) às estatais prestadoras de serviços públicos. Esse raciocínio foi inaugurado no Caso ECT (2004) e reiterado em julgados posteriores, envolvendo a Caerd-RO, a Infraero e a Cohab-AC. Nessas decisões, a Corte chegou a caracterizar tais entidades como de natureza “autárquica”.

Ou seja, o Supremo Tribunal Federal já estendeu às empresas estatais prestadoras de serviços públicos algumas prerrogativas típicas da Fazenda Pública. Entre elas estão a impenhorabilidade de bens², a imunidade tributária recíproca³, bem como a submissão de suas condenações ao regime de execução por precatórios⁴.

Esse movimento de autarquização das estatais traz consequências relevantes. Essa orientação aproxima o regime jurídico dessas entidades ao das autarquias, atribuindo-lhes garantias tradicionalmente conferidas a pessoas jurídicas de direito público. A adoção da forma empresarial, em regra, pressupõe exposição a riscos de mercado e submissão ao regime comum de execução e tributação. Ao mitigar essas características, a jurisprudência do STF redefine o alcance da opção legislativa e administrativa na conformação das entidades estatais.

A jurisprudência do STF produz um duplo movimento: preserva a natureza empresarial das estatais no que se refere à sua constituição, funcionamento e alienação, mas simultaneamente lhes atribuir prerrogativas próprias de pessoas de direito público. Essa dinâmica revela uma complexidade do modelo jurídico da empresa estatal, cuja solução passa por harmonizar a necessidade de controle público com a manutenção de sua lógica empresarial.

Sayoanara Georgia Carrijo Cabral Mihalache, advogada pleno no escritório Perman Advogados Associados, onde atua no contencioso cível estratégico, com foco em processos de alta complexidade. Possui sólida formação acadêmica, com pós-graduações em Direito Empresarial, Direito Público, Direito Constitucional e Direito Processual Civil, além de experiência consolidada em litígios de grande repercussão e relevância institucional.


REFERÊNCIAS

  1. Vide ADI 7.331/DF.
  2. Vide ADPF 556
  3. Vide RE 1.320.054/SP
  4. Vide ADPF 844

BIBLIOGRAFIA

ALVES, Vinicius J.; PEROBA, Luiz R.; GREGORIN, Rafael. Direito Tributário no STF. São Paulo: Blucher, 2022. E-book. p. 107. ISBN 9786555065008. Acesso em: 22 ago. 2025.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1968.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 1 jul. 2016.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
BRASIL. Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 27 fev. 1967.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito Intertemporal e o Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016. E-book. p. 23. ISBN 9788530971601. Acesso em: 22 ago. 2025.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 38. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 457. ISBN 9788530995935. Acesso em: 22 ago. 2025.

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