O uso da Inteligência Artificial (IA) no setor jurídico brasileiro tem avançado rapidamente, transformando a prática profissional, impulsionando ganhos de produtividade e eficiência. Em 2025, mais de 55% dos advogados utilizam ferramentas de inteligência artificial generativa[i] em sua rotina profissional. Nesse contexto, a IA generativa é uma tecnologia que pode criar textos, vídeos, imagens e outros conteúdos originais. Esse cenário revela um movimento significativo de modernização, no qual a tecnologia contribui para o aumento da produtividade e da eficiência nos serviços jurídicos, ao mesmo tempo em que levanta importantes debates sobre aspectos éticos, responsabilidade e transparência no uso dessas soluções.
Entre os principais fatores que impulsionam o crescimento do uso da inteligência artificial no Brasil, especialmente no âmbito jurídico, está o elevado volume de processos em tramitação no país. Nesse contexto, sistemas de IA utilizados pelo próprio Judiciário, como “VICTOR”, do Supremo Tribunal Federal (STF), e “ATHOS”, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), têm desempenhado um papel importante na classificação de dados e na triagem processual.
Atualmente, na rotina de trabalho dos advogados, diversas ferramentas baseadas em inteligência artificial têm sido desenvolvidas para auxiliar diretamente a prática jurídica. Entre suas funcionalidades, destacam-se: pesquisa automatizada de jurisprudência, análise de probabilidade de êxito em teses jurídicas, com base em precedentes e dados de tribunais, peticionamento automatizado, gestão de prazos processuais, atendimento ao cliente e preenchimento de petições com base em modelos jurídicos. Cita-se como exemplo o Jusfy, Deep Legal e Projuris.
É importante que os profissionais – e não apenas aqueles da área jurídica – adaptem-se a esse novo cenário, uma vez que tendência é que o uso da inteligência artificial se torne cada vez mais disseminado e integrado à rotina de trabalho. O contato com essa tecnologia deve ser encarado como uma oportunidade de aprimoramento de competências por parte dos profissionais, fazendo uso estratégico dessa ferramenta a seu favor e não deve se pautar pelo receio de que a IA substitua o trabalho humano.
Apesar dos avanços proporcionados pela inteligência artificial, é importante estar atento aos desafios associados à sua utilização. Por essa razão, o uso dessas tecnologias deve ser sempre acompanhado de uma análise crítica e revisora dos resultados gerados, especialmente em pesquisas e produção de conteúdo jurídico. Não são incomuns os casos em que a IA apresenta dados imprecisos ou até mesmo completamente inventados, o que pode comprometer a qualidade e a confiabilidade do trabalho desenvolvido.
Outro desafio relevante decorrente do uso da IA é o seu viés algorítmico. Isso ocorre porque os sistemas de IA baseiam-se em técnicas de machine learning (aprendizado de máquina), de modo que os algoritmos são treinados a partir de grandes volumes de dados para realizar previsões ou tomar decisões. No entanto, esses dados refletem padrões históricos e sociais, existindo, portanto, o risco de que preconceitos existentes na sociedade sejam replicados e perpetuados pelos sistemas automatizados. Essa é uma preocupação especialmente sensível no contexto brasileiro, marcado por profundas desigualdades sociais, econômicas e raciais.
Cumpre salientar que o processo decisório não é neutro e nem imparcial, pois se fundamenta na análise de riscos e nas informações disponíveis. Nesse sentido, toda máquina está limitada pelos dados que recebe. Portanto, para mitigar os riscos de reprodução de soluções discriminatórias, é essencial investir na qualidade dos dados utilizados no treinamento dos algoritmos.
Ademais, é preciso considerar outra questão sensível relacionada ao uso da inteligência artificial: o tratamento de informações confidenciais. No âmbito jurídico, dados sigilosos, como estratégias processuais, informações pessoais de clientes, segredos comerciais e documentos protegidos por sigilo profissional, são frequentemente manuseados por essas tecnologias. Nesse contexto, o uso indiscriminado de ferramentas de IA, especialmente aquelas baseadas em plataformas externas ou pouco transparentes quanto à gestão de dados, pode representar sérios riscos à segurança da informação e à preservação do sigilo profissional.
Isso posto, é fundamental que o uso da IA no meio jurídico esteja acompanhado de medidas rigorosas de proteção de dados, conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e critérios éticos bem definidos. A legislação impõe restrições e diretrizes significativas sobre como os dados pessoais podem ser coletados, processados e utilizados, afetando diretamente a aplicação de IA, cujo uso deve, portanto, estar em conformidade com suas regras previstas, garantindo transparência, segurança e proteção dos dados pessoais.
No Brasil, o debate sobre a regulação da inteligência artificial tem ganhado força nos últimos anos. Nesse contexto, o principal instrumento em tramitação é o Projeto de Lei n.º 2.338/2023, que propõe o Marco Legal da Inteligência Artificial e objetiva a regulamentação do uso de tecnologias de Inteligência Artificial no Brasil. Por meio do Projeto pretende-se estabelecer direitos de proteção ao cidadão, bem como implementar ferramentas de governança, que serão operadas por instituições responsáveis pela fiscalização e supervisão das tecnologias de IA.
Paralelamente, o Brasil se inspira em iniciativas internacionais, como o AI Act, aprovado pela União Europeia em 2024. Nota-se que a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (UE) protege diversos direitos que poderiam ser comprometidos com o desenvolvimento desordenado de sistemas de inteligência artificial (IA). Assim, foi efetuada a última atualização sobre o texto final do projeto da Lei de Inteligência Artificial da União Europeia (Lei de IA da UE), aprovado em janeiro de 2024 pelos Estados-membros da UE, conhecido como a primeira estrutura jurídica horizontal abrangente do mundo para a regulamentação de sistemas de IA em toda a União Europeia
Além da União Europeia, outros países também têm se mobilizado. Nos Estados Unidos, embora exista o debate de várias propostas, os estados têm avançado de forma independente, com a criação de leis que abordam aspectos gerais e específicos da utilização de IA. Já a China, por outro lado, tem adotado uma abordagem mais restritiva e rigorosa relacionada à proteção de dados e uso da internet, emitindo leis esparsas para regular a IA.
Diante disso, é crucial que o Brasil acompanhe os avanços internacionais, mas também desenvolva uma regulação adaptada à sua realidade social, jurídica e econômica. Isso porque o país enfrenta desafios particulares, como desigualdades estruturais e vulnerabilidades no acesso à justiça. Dessa forma, a regulação da IA no Brasil deve incorporar mecanismos que assegurem transparência participação democrática e proteção efetiva dos direitos fundamentais.
À vista do exposto, compreende-se que o uso da tecnologia no setor jurídico vem se expandindo rapidamente, e os profissionais devem incorporá-la como uma ferramenta capaz de potencializar seu trabalho, sempre pautando-se pela ética, transparência e pelo rigor no tratamento de dados sensíveis. No entanto, o uso dessas tecnologias também impõe desafios significativos como o risco de vieses algorítmicos, a proteção adequada das informações confidenciais e a necessidade de implementação de uma regulamentação específica que assegure o uso responsável dessas soluções.
Thaynara Alves de Souza, advogada no escritório Perman Advogados Associados, bacharel em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Pós-Graduanda em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade Líbano. Atua com ênfase no Contencioso Cível, Trabalhista e Empresarial, prestando assessoria jurídica em demandas estratégicas e de alta complexidade. Possui experiência de atuação em Tribunais Superiores.
REFERÊNCIAS
[i] https://convergenciadigital.com.br/inovacao/oab-sp-55-dos-advogados-usam-ia-generativa/