Artigo | Desafios Regulatórios e Jurídicos na Escrituração e Comercialização de CBIOs no Programa Renovabio

1) O que são CBIOs e como são emitidos?

Os Créditos de Descarbonização (CBIOs) são definidos na legislação brasileira como instrumentos registrados sob a forma escritural, destinados à comprovação do cumprimento das metas individuais de descarbonização atribuídas aos distribuidores de combustíveis. Nos termos do art. 5º, inciso V, da Lei nº 13.576/2017, o CBIO é:

“instrumento registrado sob a forma escritural, para fins de comprovação da meta individual do distribuidor de combustíveis de que trata o art. 7º desta Lei.”

A emissão primária dos CBIOs corresponde ao processo de geração inicial do crédito, realizado sob a forma escritural, conforme estabelecido no art. 13, caput. Essa emissão deve ser solicitada pelo emissor primário, ou seja, o produtor ou importador de biocombustíveis autorizado pela ANP, nos termos do art. 5º, inciso VII.

Para que a emissão ocorra, o emissor deve apresentar ao escriturador — instituição financeira responsável por manter os registros dos CBIOs — os documentos que comprovam a comercialização do biocombustível, especialmente a nota fiscal de venda. A quantidade de CBIOs que poderá ser emitida será proporcional ao volume comercializado e calculada com base na Nota de Eficiência Energético-Ambiental (NEEA), constante do Certificado da Produção Eficiente de Biocombustíveis, conforme detalhado no § 1º do art. 13.

Importante destacar que, segundo o § 2º do art. 13, a solicitação deverá ser efetuada em até sessenta dias pelo emissor primário da nota fiscal de compra e venda do biocombustível, extinguindo-se, para todos os efeitos, o direito de emissão de Crédito de Descarbonização após esse período.

A Nota de Eficiência Energético-Ambiental reflete a diferença de intensidade de carbono entre o biocombustível certificado e seu combustível fóssil equivalente, traduzindo-se em um número específico de créditos de descarbonização que o emissor tem direito a solicitar. Segundo o art. 14, cada CBIO deve conter, entre outras informações, sua denominação, número de controle, data de emissão, dados da nota fiscal lastreadora e do biocombustível comercializado.

A negociação dos CBIOs ocorre em mercados organizados, inclusive por meio de leilões, conforme autorizado pelo art. 15 da Lei nº 13.576/2017. Após sua emissão primária, os CBIOs passam a ser negociáveis por qualquer investidor interessado, respeitadas as normas de registro, custódia e intermediação previstas em regulamento próprio.

2) O Papel dos CBIOs na Política Nacional de Biocombustíveis

A Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio) foi instituída pela Lei nº 13.576, de 26 de dezembro de 2017, como parte integrante da política energética nacional prevista no art. 1º da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997. O programa tem como objetivo central assegurar previsibilidade e sustentabilidade na inserção dos biocombustíveis na matriz energética brasileira, contribuindo de forma direta para o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris, especialmente no que diz respeito à redução de emissões de gases de efeito estufa (art. 1º, I, da Lei nº 13.576/2017).

Nesse contexto, os Créditos de Descarbonização (CBIOs) constituem um dos principais instrumentos regulatórios do RenovaBio, nos termos do art. 4º, inciso II, da mesma lei. Trata-se de ativos financeiros escrituralmente registrados, cujo lastro corresponde à quantificação da redução de emissões de gases de efeito estufa proporcionada pela produção e comercialização de biocombustíveis certificados. Esses créditos são emitidos por produtores e importadores de biocombustíveis autorizados pela ANP, conforme critérios de eficiência energético-ambiental estabelecidos no processo de Certificação de Biocombustíveis (arts. 5º, VII e 13).

A certificação é conduzida por firmas inspetoras credenciadas, que avaliam a intensidade de carbono dos biocombustíveis com base em metodologia de análise do ciclo de vida (art. 5º, I, III e XI), sendo o resultado dessa análise consolidado na Nota de Eficiência Energético-Ambiental, prevista no art. 5º, inciso XIII. A escrituração dos CBIOs ocorre por meio de instituições financeiras autorizadas, denominadas escrituradores (art. 5º, VIII), e a negociação é realizada em mercado organizado, conforme expressamente autorizado pelo art. 15.

Embora o marco legal represente um avanço significativo na institucionalização da política de descarbonização do setor de combustíveis, persistem desafios relevantes, sobretudo relacionados à padronização dos critérios de certificação, à transparência no processo de emissão dos créditos e à efetiva fiscalização do cumprimento das metas individuais pelas distribuidoras. A multiplicidade de agentes envolvidos no ciclo de certificação, escrituração, comercialização e aposentadoria dos CBIOs impõe exigências crescentes de governança regulatória e segurança jurídica.

Outro ponto sensível é a dinâmica de mercado dos CBIOs, cujo preço é definido com base em oferta e demanda. A volatilidade dos valores negociados, a concentração da emissão em poucos emissores primários e a dificuldade enfrentada por alguns distribuidores na aquisição e aposentadoria dos créditos geram instabilidade e incerteza, o que pode comprometer o cumprimento das metas setoriais anuais.

Adicionalmente, os CBIOs passaram a se inserir em uma agenda mais ampla de governança corporativa e sustentabilidade, sendo integrados por diversas empresas às suas estratégias de ESG (Environmental, Social and Governance). Essa nova dimensão amplia o potencial dos CBIOs como ativos não apenas regulatórios, mas também ambientalmente valorizados, atraindo investidores comprometidos com critérios de responsabilidade socioambiental.

Para que o RenovaBio atinja plenamente seus objetivos estruturais, é fundamental o aperfeiçoamento contínuo da regulação dos CBIOs, com foco na previsibilidade normativa, no fortalecimento institucional da ANP, e no refinamento dos instrumentos de compliance, monitoramento e transparência. A consolidação dos CBIOs como pilar central da política de transição energética brasileira depende da estabilidade do marco legal, da cooperação entre os entes regulados e do engajamento consistente do setor privado com as metas de descarbonização estabelecidas no âmbito da lei.

3) Aposentadoria dos CBIOs e cumprimento das metas pelos distribuidores

A aposentadoria dos CBIOs é o ato jurídico final que formaliza a utilização do Crédito de Descarbonização (CBIO) para fins de cumprimento da meta individual de descarbonização imposta ao distribuidor de combustíveis.

Ou seja, aposentar um CBIO é solicitar ao escriturador (instituição financeira responsável pelos registros dos créditos) que retire aquele CBIO de circulação, tornando-o intransferível e sem valor de mercado. A partir daí, ele serve exclusivamente como prova do cumprimento da meta legal de redução de emissões.

A comprovação do cumprimento da meta individual anual imposta aos distribuidores de combustíveis se dá, portanto, pela aposentadoria dos CBIOs adquiridos por esses agentes. A definição de aposentadoria está no art. 5º, inciso XXIII, incluído pela Lei nº 15.082/2024, que estabelece:

“processo realizado por solicitação do detentor do Crédito de Descarbonização ao escriturador que visa à retirada definitiva de circulação do CBIO, impedindo qualquer negociação futura do crédito aposentado, conforme regulamento.”

Esse procedimento deve ser realizado até o encerramento do ano civil. O § 2º do art. 7º, com redação dada pela Lei nº 15.082/2024, determina que:

“A comprovação de atendimento à meta individual por cada distribuidor de combustíveis será realizada, anualmente, a partir da aposentadoria dos Créditos de Descarbonização em sua propriedade até 31 de dezembro de cada ano.”

Isso significa que não basta adquirir os CBIOs no mercado: o distribuidor deve solicitar sua aposentadoria junto ao escriturador, o que equivale a declarar formalmente que está utilizando aquele título para cumprir sua meta legal de redução de emissões. A partir da aposentadoria, o CBIO é retirado definitivamente do sistema e perde sua função negocial.

A aposentadoria é, portanto, o mecanismo formal e obrigatório de cumprimento da obrigação legal de descarbonização imposta aos distribuidores. A ausência dessa comprovação sujeita o distribuidor a sanções expressamente previstas nos arts. 9º, 9º-A, 9º-B e 9º-C, que incluem multas (de até R$ 500 milhões, conforme § 1º do art. 9º), vedação de comercialização, restrições operacionais, e até mesmo a revogação da autorização para o exercício da atividade.

Além das sanções pecuniárias, o art. 9º-C prevê que o descumprimento da meta por mais de um exercício ensejará a revogação da autorização de funcionamento do distribuidor, estendendo-se essa responsabilidade a eventuais sucessores empresariais. Já o art. 9º-B determina a inclusão do distribuidor inadimplente em lista pública de sanções, vedando a comercialização de combustíveis com ele por outros agentes do setor e a realização de importações diretas.

Por fim, o descumprimento das metas individuais também configura crime ambiental, nos termos da nova redação do art. 9º, vinculando-se ao art. 68 da Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais). A responsabilidade penal alcança não apenas o distribuidor, mas também seus dirigentes, e pode ser cumulada com a multa já prevista, calculada com base no maior preço médio mensal do CBIO no período da meta, conforme o § 2º do art. 9º.

4) Desafios Regulatórios e Jurídicos na Escrituração e Comercialização de CBIOs

Apesar da solidez normativa estabelecida pela Lei nº 13.576/2017 e dos avanços institucionais alcançados com a implementação do RenovaBio, a escrituração e a comercialização dos Créditos de Descarbonização (CBIOs) ainda enfrentam obstáculos regulatórios e jurídicos significativos, que impactam a segurança jurídica e a efetividade do programa.

O primeiro desafio refere-se à complexidade do sistema de certificação, que é a base para a posterior emissão dos CBIOs. A obtenção da Nota de Eficiência Energético-Ambiental (NEEA), conforme disciplinada no art. 5º, inciso XIII, depende da aplicação de critérios técnicos avançados e da utilização de metodologias de avaliação do ciclo de vida que exigem alto grau de especialização. A falta de padronização no uso dos chamados perfis padrão ou específicos agrícolas (art. 5º, XXI e XXII) pode comprometer a comparabilidade e a confiabilidade das certificações emitidas.

Outro ponto crítico está relacionado à figura do escriturador, definida no art. 5º, inciso VIII, como a instituição financeira responsável pela escrituração dos créditos. Embora a legislação atribua a esse agente o dever de manter o registro da cadeia de negócios com os CBIOs (art. 16), ainda há pouca clareza sobre os mecanismos de controle, fiscalização e responsabilização em caso de falhas operacionais, divergências nos registros ou falhas no cumprimento das ordens
de aposentadoria.

Do ponto de vista jurídico, há também insegurança quanto à responsabilidade civil e penal dos agentes envolvidos, especialmente em casos de emissão indevida, escrituração com vícios ou inadimplemento das metas de descarbonização. O art. 9º da Lei nº 13.576/2017, em sua redação atual, prevê consequências severas — incluindo multa de até R$ 500 milhões e imputação de responsabilidade penal aos dirigentes — o que acentua a necessidade de definição clara dos deveres de diligência e dos limites de responsabilidade de cada elo da cadeia.

Além disso, os mecanismos de fiscalização da ANP sobre a emissão e comercialização dos CBIOs ainda demandam fortalecimento institucional. Embora a agência tenha competência para regulamentar e monitorar o cumprimento das metas, conforme o art. 23, a fiscalização da movimentação de combustíveis e dos volumes que servem de base para a emissão dos créditos nem sempre acompanha, na prática, a sofisticação técnica exigida pelo sistema.

Por fim, a legislação ainda carece de maior integração com o ordenamento jurídico ambiental e financeiro, de forma a alinhar o mercado de CBIOs com os regimes de mercado de carbono em desenvolvimento no país. A ausência de interoperabilidade entre políticas setoriais ambientais e energéticas compromete o potencial de expansão do instrumento, sobretudo se considerado o contexto internacional de precificação de carbono e finanças sustentáveis.

Assim, para que os CBIOs se consolidem como ativos eficazes de política pública ambiental, é essencial o aprimoramento do marco regulatório infralegal, a clarificação das obrigações jurídicas de emissores, escrituradores e adquirentes, e o fortalecimento dos instrumentos de governança e fiscalização. A segurança jurídica do RenovaBio depende, em grande medida, da evolução e amadurecimento dessas estruturas.

Sayoanara Georgia Carrijo Cabral Mihalache, advogada pleno no escritório Perman Advogados Associados, onde atua no contencioso cível estratégico, com foco em processos de alta complexidade. Possui sólida formação acadêmica, com pós-graduações em Direito Empresarial, Direito Público, Direito Constitucional e Direito Processual Civil, além de experiência consolidada em litígios de grande repercussão e relevância institucional.

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